Facas Querencia Gaucha |
Dreys, que esteve por aqui entre 1817 e 1838, ao descrever o gaúcho, fala que na bota direita, traz uma faca de prata, metida em bainha também de prata. Debret, em mais de uma iconografia, fixa esse hábito, em torno de 1823, de índios civilizados, com a faca calçada na parte interna da bota de garrão de potro, no lado que corresponde a parte externa da perna. E porque no lado direito? Era funcionalidade folclórica. Certamente os índios não eram canhotos.
Dessas investigações surgiu um apreciável material sobre a faca, seu uso, importância, tipos denominações dadas pelo gaúcho rio-grandense, material que foi aproveitando para um trabalho conjunto, com o poeta Glaucus Saraiva, para ilustrar, através de breve texto, o tipo de faca que a fábrica Zivi-Hercules lançara no mercado.
Nossos estudos continuaram e em 1967 a Comissão Estadual de Folclore Rio Grande do Sul, a frente da qual está o professor Dante de Laytano, editou um volume ilustrado sob o título gaúchos de faca na bota. Servimo-nos deste estudo, para o presente trabalho.
Do sílex paleolítico à idade dos metais, a faca acompanha a História da Humanidade. Dificilmente definiríamos a história social do gaúcho sem a complementação da faca. Na luta, no trabalho, nas lides domésticas, nas artes campeiras, na lenda, na superstição. Da infância da terra à maturidade histórica, a faca é uma constante na vida do gaúcho. Com a faca o gaúcho primitivo tirou as botas garra de potro e nestas apresilhou as velhas esporas nazarenas, com rosetas ponteagudas, que impulsionaram o cavalo.
Com a faca talhou o couro para retovar as três pedras das boleadeiras, indispensáveis outrora nas lides campeiras e temíveis na guerra. E atou a faca na ponta de uma taquara, quando os clarins reclamaram as lanças crioulas nas estremadas da Pátria. O gaúcho primitivo desprezou a arma de fogo e a nobreza da luta no ferro branco. Com a faca o gaúcho agrediu e defendeu. Faca que, debaixo dos pelegos, tranquiliza o sono.
Facas Don Cassio Selaimen |
Com a faca o gaúcho cortava a própria melena ou aparava trança de china. Tosava de cola e crina e aparava os cascos do pingo nas vésperas de carreira. O guasca enamorado, com a faca apanhou a flor que ofereceu a sua amada. Beijando a cruz da adega, o guasca traído jurou vingança. E o aço que canta corcoveava na bainha bordada de flores. Com a faca, o gaúcho falquejou a canga para os bois puxarem as estradas do Rio Grande.
Carneadeira, chavasca, prateada, língua de chimango, ferro branco, choto, xerenga... seja qual for a denominação popular, a faca e a adaga estão incorporados à vida do homem sul-riograndense. E tal a sua utilidade que no campo ou na cidade, o gaúcho que se preza tem sua faca à mão.
A faca sangra a rês, coreia, carneia, prepara a costela para o assado e o couro para o laço, corta o churrasco e apara os tentos. Enquanto o piá, com sua faquinha, prepara o forquilha para o bodoque, a velha, na cozinha, corta o charque para o arroz de carreteiro. Em noites de São João, a gauchinha crava a faca no tronco da bananeira para antecipar a sorte. Com a faca acortando a terra, o campeiro vira o casco, cruzando dois pauzinhos sobre a simpatia infalível.
Faca não se dá. Faca se vende mesmo de presente, pela moeda de menor valor. E o amigo paga para não perder a amizade. É com a faca que o gaúcho corta o amarelinho para tragar as introspecções do cismarento cigarro de palha. Com a faca, o gaúcho brincou, no jogo do talho, cara a cara. Peleou nos entreveros revolucionários, corpo a corpo; dançou a faca maruja e trabalhou, castrando o gado. Com a faca, o gaúcho falquejou a própria História do Rio Grande, a infância da terra, à maturidade histórica, a faca prolongou o braço do gaúcho.
A necessidade do emprego da faca pelo gaúcho, em diferentes atividades, aliadas a fatores econômicos e sociais da sua própria formação, faz surgir no comércio rio-grandense variados tipos dessa peça. No entanto, em traços gerais, podemos dizer que a faca gaúcha se caracteriza por ter uma lâmina de secção triangular, com um só gume, sendo a parte superior da lâmina conhecida por lombo ou costas. Apresenta um comprimento em torno de 33 cm, tendo em algumas delas, na lâmina, além do gavião normal, orifícios, ranhuras, entalhes que se relacionam ao trabalho do gaúcho, na sua faina campeira. Os cabos são chatos ou meio oitavados (estão presos ao espigão). Podem ser de madeira ou chifre. Ou ainda, mais delicados, de metal, de prata e ouro, cujas bainhas apresentam desenhos e modernamente cenas ou motivos regionais. A bainha de couro ou metal, ou ainda de chifre. A primeira é usada, principalmente nas lides campeiras diárias, feitas de couro cru ou sola, muitas vezes bordada com finos tentos. Quando de prata ou níquel, pode ser lavrada, cinzelada ou bordada a ouro, com motivos diversos, acompanhando os desenhos do cabo da faca.
Numa bainha destacamos a ponteira e o bocal, reforços no início e no fim da mesma (às vezes, anel no meio); a espera, responsável por sua fixação na guaiaca. Ampliando a própria bainha, no meio rural, vamos encontrar, as vezes, a chaira, assentador da faca, constituído por uma peça de aço cilíndrica, de comprimento médio de 30 cm, munido de cabo, onde se assenta o fio da lâmina.
Variando de região para região, a faca pode ser usada na cintura, das seguintes maneiras:
a) à altura das cadeiras, em posição enviazada, com a parte correspondente ao fio virada para cima, aproveitando o gaúcho, comumente, para no cabo que se destaca, pendurar seu relho, através do fiel. Esse costume é habitual no campeiro fronteirista.
b) do lado do corpo, com o fio virado para baixo e o cabo inclinado para frente. Em ambas as posições, a faca está segura à cinta ou guaiaca, pela bainha. Pode, no entanto, ficar segura a uma espécie de espera de couro, com alça independente por onde passa o cinto ou a guaiaca, ficando a faca pendurada, aparecendo junto à perna pelo lado externo. Da mesma fornia é usado o facão de mato (não confundir com o punhal). Esta modalidade é encontrada entre gaúchos dos Campos de Cima da Serra. No período em que a moda fazia obrigatório o uso do colete, a cava deste era lugar seguro para o gaúcho da cidade calçar sua pequena faca.
É chamada de xerenga, caxerengue ou caxerenguen-gue — Faquinha pequena, velha. Julgamos derivar de Ca-xiringuengue — faca velha sem cabo, oriundo do indígena kiceringuengue: de Kice — faca, segundo Coruja, Ou de quice mais reguengue este do afro, segundo Spalding.
Estas denominações também são conhecidas em outros Estados do Brasil: Chavasca — fronteirismo galponeiro, possivelmente de Chavascada. Existe, também, chavasco — tosco, grosseiro. Chôío faca pesada, feia. Língua de ximango — formato de lâmina comprida e fina — lembra a língua do ximango, ave de rapina dos campos do Rio Grande do Sul. Ferro branco — de arma branca. Prateada — devido ao cabo ou à bainha (ou ambos) serem de prata ou metal desta cor. Farinheira — de lâmina larga, tornando-se própria para servir farinha no churrasco. Carneadeira — especificamente, própria para tirar couro e evitar furos nos mesmos; com a ponta da lâmina algo volteado para cima. Extensivo a qualquer faca afiada. Adaga — do latim daga.
Arma de defesa pessoal. Geralmente, possui junto ao cabo uma guarda em forma de S. Tem comprimento maior do que as facas normais; fio nos dois lados de toda a lâmina ou somente na extensão próxima da ponta e ainda um sulco de cada lado da lâmina, no sentido de seu comprimento. O espigão não fica no prolongamento do tombo como nas demais, mas sim no meio da lâmina. Traira — denominação antiga, hoje em desuso. Resbalosa — gíria entre malevas do campo. Cotó - faca pequena, ordinária. Faca de rastro — faca grande ou tipo facão de abrir picada em mato carrasquento.
Fonte: O Gaúcho
danças, trajes artesanatao
João Carlos Paixão Côrtes
6 comentários:
Muito bacana!Foi uma ótima leitura.
Excelente material, ótima leitura.Parabéns.
Aprendi uma barbaridade
Sabia alguma causa,mas foi didático aprendi bastante
Adorei a leitura!!!!!! Encantada!!!!
Excelente material, muito ilustrativo e didático!!
Postar um comentário