terça-feira, 3 de março de 2020

Por que o tema "200 anos da chegada de Saint Hilaire no RS" merece atenção especial - Parte VI

NA ZONA SUL

        Saint-Hilaire não desceu do rio Jacuí através das estâncias do rio Camaquã até a várzea do São Gonçalo. Inversamente, encontrava-se na vila de Rio Grande quando teve oportunidade de subir até àquela várzea, no iate e em companhia do empresário António José Rodrigues Chaves, português de nascimento e então com residência e charqueada nas cercanias de São Francisco de Paula.

     "A viagem foi muito agradável. O Senhor Rodrigues Chaves é um homem culto, sabendo o Latim, o Francês, com leituras de História Natural, conversa muito bem".

      "Diante da charqueada do Senhor Chaves estendem-se vá¬rias fileiras, compridas, de grossos paus fincados na terra, com varões transversais destinados a estender a carne a secar. A carne-seca não se conserva mais de um ano: é exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros".

      "A mesa de meu hospedeiro é farta. É principalmente a carne de vaca que se apresenta em feitios variados; contudo temos pão e vinhos às refeições".

      "Esta região pertence a charqueadores, que aí recebem, sem a mínima dificuldade, o gado criado nas gordas pastagens situadas ao sul do Jacuí. Há entre eles homens muito ricos. Há atualmente dezoito charqueadas nessa paróquia, e a média de animais abatidos por ano é de cerca de vinte mil".

      "Fui hoje com o Senhor Chaves à aldeia (Pelotas), viajando em cabriole descoberto. Nada tão belo como'a região por nós atravessada. Nos pomares, na maioria muito grandes, são cultivadas laranjeiras, pessegueiros, parreiras, legumes e algumas flores".

     "A aldeia conta para mais de cem casas, construídas segundo um plano regular de edificação. As ruas são largas e retas. Não se vê uma palhoça sequer e tudo aqui anuncia abastança. Os homens que encontrei achavam-se vestidos com asseio e vi várias lojas sortidas de mercadorias diversas. Operários e principalmente negociantes constituem a população."

     "Muito significativo o seu registro a respeito dos escravos. Embora venhamos a saber, depois, que o Senhor Rodrigues Chaves era um homem perfeitamente imbuído dos ideais do liberalismo, com tendência republicana e franco adepto da abolição da escravatura, seu comportamento diante dos negros refletia a mesma insensibilidade já observada de um modo geral entre os sul-rio-grandenses".

     "Nas charqueadas os negros são tratados com rudeza. O Senhor Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no que é imitado por sua mulher; os escravos parecem tremer diante de seus donos".

     "Há sempre na sala um pequeno negro de dez ou doze anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras."


    Provavelmente esteja aqui localizada, no tempo e no espaço, a origem da lenda e mito do Negrinho do Pastoreio, arquétipo a que se reportam os humildes maltratados pelos poderosos. Era uma vez um estancieiro com muito campo, muito gado, uma tropilha de cavalos de pêlo tordilho, muitas onças de ouro e um filho. Tinha também um cavalo parelheiro e um negrinho escravo que, por ser de peso muito leve, é quem corria esse baio nas carreiras. Tendo perdido uma carreira, por castigo o Sinhô manda que ele vá pastorear a tropilha de cavalos tordilhos, não deixando nenhum escapar. 

       O filho do Sinhô espanta a tropilha e, em meio à noite escura, o Sinhô dá o castigo do negrinho ir procurá-la. Ele pega um toco de vela no oratório da estância, sai peio campo e, à medida que os pingos da vela respingam, tornam-se outras tantas velas que atraem a tropilha. O filho do Sinhô torna a espantar a tropilha e, como último castigo, o Sinhô surra tanto o negrinho a ponto de matá-lo. Para não perder tempo, atira-o num formigueiro em vez de sepultura. No dia seguinte o Sinhô vai ver se as formigas já devoraram todo o corpo do negrinho mas tem a surpresa de vê-lo sair sãozinho, montar no parelheiro baio e subir para o céu levando a tropilha dos tordilhos. Sob a proteção de Nossa Senhora, o Negrinho do Pastoreio acha qualquer coisa que a gente tenha perdido, desde que se lhe acenda um toco de vela - Lembra Luiz Carlos Barbosa Lessa, sobre a Lenda do Negrinho do Pastoreio.

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