Saint-Hilaire estivera em Montevidéu, percorrera a Banda Oriental, reentrara na Capitania pela fronteira de Quaraí e, ultrapassando o rio Ibicuí, já estava no território missioneiro. Em São Borja, visita a igreja, "e a grandiosidade deste edifício, semidestruído, causou-me profundo sentimento de surpresa e de respeito".
O Comandante Chagas Santos havia sido recentemente substituído pelo Coronel Paulet, "homem sensato, inteligente e de nobres sentimentos". Percorre as semiabandonadas cidades de São Nicolau ("achava-se já em deplorável estado de decadência quando os gauchos espanhóis ali entraram, em abril de 1819, e acabaram de destruí-la"), São Luís ("não há senão trezentos habitantes, todos velhos, mulheres e crianças"), São Lourenço ("apenas duzentos indivíduos sujos, mal vestidos, tristes e sonsos, pois os índios são como crianças: alegres e francos quando tratados com carinho, e melancólicos e aborrecidos quando tratados rudemente"), São Miguel ("a menos pobre das aldeias, possuindo uma considerável plantação de mate e importante estância onde são marcados três mil animais cada ano; seus habitantes são bem nutridos, bem vestidos e tratados carinhosamente por seu administrador"), São João ("as terras daqui, como é notório nas de todas as Missões, são excelentes e produzem igualmente trigo, mandioca, milho, algodão, feijão, favas" e toda espécie de legumes") e Santo Ângelo ("a população não vai além de oitenta pessoas, os homens agora ocupam-se em fazer erva-mate e são as mulheres que cuidam das plantações").
Só encontrava velhos, mulheres e crianças, .porque todos os jovens haviam sido requisitados para o Regimento de Guaranis, sediado em São Borja. "É extremamente necessário diminuir o aspecto militar desta província se não a querem destruir completamente."
Seus criados e o vaqueano (guia) brincam e dançam com as índias. Ele encontra um grupo delas lavando roupa à beira do rio Camaquã: não se envergonham de estar nuas e continuam tranquilamente naquela atividade. Pelo que tem ouvido, Saint-Hilaire chega à conclusão de que as nativas "nasceram só para a perdição da nossa raça".
"O asseio é uma das qualidades que me parecem distinguir as mulheres guaranis. São frequentemente andrajosas, porém limpas. Sua vestimenta consiste apenas numa camisa e um vestido de algodão; seus cabelos são muito compridos, trazem-nos enrolados atrás da cabeça e quando vão à igreja usam um véu branco. Não sei se é o hábito de ver índias que vai fazendo desaparecer a meus olhos qualquer coisa da feiura delas, mas parece-me de fato existir entre essas mulheres algo de agradável, em seu sorriso infantil."
Difícil encontrar um miliciano que não se faça acompanhar de uma índia, mesmo em diligências como a da captura de um negro que cometera desatinos do outro lado do rio Uruguai. "Se este homem branco, natural de Santa Catarina, não tivesse emigrado para aqui, nunca teria adotado essa prática de se fazer seguir por sua índia, mas, pela convivência com os guaranis, acabou por lhes imitar os costumes. Quase todos os milicianos são assim amasiados a índias. Mas essas misturas farão a Capitania do Rio Grande perder a sua maior vantagem — a de possuir uma população sem mescla. Os filhos de pais brancos e índias guaranis não terão a docilidade que é virtude desse povo e, criados por índias ou abandonados a si mesmos, terão todos os vícios dos índios e dos brancos."
Quando de sua estada em São Borja, delicia-se com a musicalidade dos guaranis. "Fui hoje à missa, durante a qual alguns meninos cantaram árias portuguesas, com voz muito boa e muita afinação." "A banda do Regimento de Guaranis executou o hino do regimento, com muito gosto e segurança. Os jesuítas serviam-se da música para abrandar os costumes dos nativos e para cativá-los. Como os índios só ouviam o som dos instrumentos nas cerimônias religiosas, logo tomaram a música como parte essencial do culto divino, tornando-se cristãos tanto quanto podiam ser, pois eram apaixonados pelos instrumentos musicais. Após o desaparecimento dos jesuítas, o amor à música persistiu; e a aprendizagem da música tornou os guaranis também soldados, como outrora os fizera cristãos."
Troca opiniões, longamente, com o Coronel Paulet a respeito da situação dos guaranis. "Disse-me o Senhor Paulet que o sistema jesuítico formava um todo do qual não é possível que se conservem umas partes suprimindo-se outras. Era apoiado sobre bases não mais existentes. Tais bases eram as poucas ideias que os índios tinham do resto do mundo, sua separação de todos os brancos que não pertencessem à ordem dos jesuítas. Mas hoje eles sabem que o mundo não se limita às suas aldeias. Contrariados, nada os impede de fugirem. E um grande número deles, dispersando-se já pela Capitania, constitui forte exemplo a ser seguido."
Saint-Hilaire confessa não saber como remediar a situação. "É bem verdade que no estado atual o índio exige pouco conforto. Podendo dividir com uma companheira seu rancho mal construído, vendo um pedaço de carne suspenso ao teto e tendo sua cuia cheia de erva-mate, será mais feliz do que o maior potentado branco, cercado de aduladores e seduções. Todavia, esses escassos confortos são suficientes para levá-lo à desaparição, porque, para mitigar sua fome, precisará trabalhar, e terá de se submeter à opressão."
"A saída dos índios das Missões corresponde à entrada de novos brancos. Os índios serão em parte renovados pela chegada de europeus, de paulistas ou mineiros, sendo possível o desaparecimento dos guaranis ao fim de uma ou duas gerações."
Aliás, os paulistas já estão chegando lá. Como tropeiros de cavalos e mulas. "Vão regressar às suas terras no próximo mês de setembro, pois é nessa época que os pastos se apresentam melhores no sertão, facilitando a condução dos animais adquiridos." Ou como o chacreiro Chico Penteado, "produzindo abundantemente o trigo, milho, algodão, feijão, arroz, amendoim, mandioca, melancia, abóbora, melão e todos os frutos europeus". "Mas o excessivo custo das mercadorias concorre para arruinar os agricultores. Pois, enquanto levam-lhes o produto de seus trabalhos, são eles obrigados a pagar suas roupas e seus confortos a preços exorbitantes. Os objetos mais baratos custam mais 100% que em Porto Alegre, havendo alguns cuja diferença sobe a 200 e 300%."
"Pretende o Coronel Paulet estabelecer um correio entre Missões e Porto Alegre."
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