A comida, aliás, foi outra dificuldade porque os pratos russos não agradam o nosso paladar. Então, eram aquelas sopas e tal, porque lá faz muito frio. A gente sentia bastante, mas cumpria com tudo que era preciso.
Nossa rotina era do hotel pro centro de controle e do centro de controle pro hotel. Nesse interim, ficamos em confinamento durante dez dias no Cazaquistão, no Hotel dos Astronautas, nos quais não podíamos sair pra nada. Sabíamos que estávamos sendo observados. Nessa ocasião um coronel russo, daqueles bem sisudos, chegou pra mim e disse: “Olha, não é proibido de vocês saírem, mas não é permitido”, porque, na realidade, o Hotel dos Astronautas no Cazaquistão é considerado território russo, mas saindo da área do hotel é Cazaquistão, e daí não tínhamos visto para circular. Como não tínhamos autorização para entrar no país, só podíamos andar com a equipe russa, nos ônibus deles, e só para irmos até o Centro de Lançamento.
Qual a função desse período de isolamento no Cazaquistão?
Loiva - Esse período era a fase final de treinamento dos astronautas. Além da preparação pessoal, dos testes físicos e exames médicos, eles faziam, diariamente, no centro de treinamento, o voo simulado. Lá já estava a famosa cadeirinha, que reproduz o ambiente da nave espacial, na qual eles eram colocados pra se ambientar e se preparar para o voo. Diariamente, eles tinham uma rotina bem rígida de treinamento pra garantir o sucesso da missão. Não podia haver falhas.
Entre quantas pessoas vocês viajaram para a Rússia?
Loiva - Éramos, na equipe, 14 pessoas. Nós três da AEB, o astronauta Pontes, um médico, um tradutor e mais oito pesquisadores. Esses foram a trabalho. Depois, havia a comitiva que era composta pelo presidente, ministro e outros envolvidos no projeto, aqueles que saem na foto (risos). Aliás, como só tínhamos um tradutor, precisávamos nos virar no inglês, porque ela acabava acompanhando a comitiva de políticos e nós, que precisávamos, ficamos sem. Mas faz parte (risos).
Como o projeto foi custeado?
Loiva - O voo do astronauta foi custeado com dinheiro do Ministério da Ciência e Tecnologia. Na época, até tentamos um patrocínio junto à Petrobrás, mas a estatal não quis apoiar o projeto. Os 15 milhões de dólares que a missão custou foram parcelados e pagos pelo com recursos diretos do Ministério.
Quando aquele foguete explode você começa a pensar: “Ai, meu Deus, será que vai dar certo?”
Qual o momento mais emocionante?
Loiva - O dia do voo. Você ficar perto, acompanhando o lançamento, ver a explosão, o foguete subindo, você sabe que nele estão três pessoas com as quais você convive, é uma emoção, uma coisa inexplicável. Quando aquele foguete explode você começa a pensar: “Ai, meu Deus, será que vai dar certo?”. Dizem que são os oito minutos mais longos da vida de uma astronauta, que é o tempo que demora pra ele chegar em órbita, depois que chegou em órbita, daí tudo bem. No momento do lançamento teve um episódio que me marcou muito. Os filhos e a esposa do Pontes estavam comigo e na hora que o motor de combustão explodiu pro lançamento, a filha deu um grito chamando pelo pai. Aquele grito soou muito emocionado por ver o pai ir pro espaço, mas, ao mesmo tempo, denotava um medo se tudo daria certo. Até hoje essa é uma lembrança muito forte.
E depois, a volta. No momento do pouso estávamos de volta ao Cazaquistão, eu e o médico brasileiro – eu com a responsabilidade de representação do governo brasileiro, e o médico para acompanhar o Pontes nos primeiros dias depois do pouso – quando um pessoal americano - muito legal - se prontificou a nos acompanhar para ver o retorno, porque com eles nos entendíamos melhor, graças ao pouco de inglês que falávamos. Quando vimos aquela incandescência e depois o pouso, foi uma sensação de alívio. Daí foram os dias de acompanhamento pra ver se estava tudo bem com a saúde do astronauta e voltar ao Brasil pra contar sobre o sucesso da missão.
No retorno, foi muito bom encontrar todos que tinham torcido por nós, que torceram para os experimentos darem certo. A alegria de viajar pelo país relatando a experiência. Confesso que foi cansativo, muito tenso em todos os momentos, com muitas dúvidas se tudo daria certo.
O meu chefe sempre foi muito organizado, muito didático, e como vínhamos trabalhando juntos há muito tempo, mais de oito anos, um dia, analisando o feito, perguntei pra ele: “Dr. Múcio, poxa-vida, por que a gente tem que fazer isso?”, afinal, as coisas nem sempre davam certo, nem sempre saiam como a gente gostaria, e ele me respondeu: “Loiva, recolha-se a sua insignificância, não nos perguntaram, mandaram fazer e nós vamos fazer” (risos). Ele era muito espirituoso.
Como tu te sentes em relação a esse trabalho?
Loiva - Eu sinto muito orgulho, realmente muita emoção em falar sobre o voo do astronauta porque acho que é um fato que não vai se repetir nem nos próximos 10 e nem nos próximos 20 anos, de colocarmos um astronauta brasileiro no espaço. Uma pena, porque o Brasil tem tanta coisa boa pra investir na área espacial, mas as políticas nem sempre tratam daquilo que a gente gostaria, que tecnicamente é viável. Às vezes, as questões políticas acabam falando mais alto, e na área de tecnologia, eu - que sempre atuei no segmento de ciência e tecnologia - aprendi que os investimentos não ocorrem porque ciência e tecnologia não dão votos. No Brasil, se não da voto não tem prioridade.
Depois da missão ainda fiquei por mais dois anos na AEB, daí achei que já havia dado minha contribuição e que era hora de me dedicar à família, afinal, eu já estava aposentada há 10 anos e tinha dado minha contribuição no Capes, no CNPq e depois na Agência Espacial. Foi quando me desliguei completamente.
"Hoje, falamos pelo celular,
estamos aqui nos vendo por vídeo,
graças ao programa espacial".
Tu achas que essa missão espacial cumpriu com o objetivo de divulgar a engenharia espacial e a pesquisa científica no Brasil?
Loiva - Ajudou muito e como tínhamos um programa chamado AEB Escola, nós conseguimos vincular a missão ao projeto e o AEB Escola pode continuar trabalhando e reforçando a importância do programa espacial como um todo, não só o programa espacial brasileiro. Mas, com o tempo, o programa foi diminuindo e o voo do astronauta brasileiro foi caindo no esquecimento. Entretanto, precisamos pensar que o programa espacial (no mundo), de modo geral, foi o grande responsável por toda essa tecnologia que nós temos hoje. Hoje, falamos pelo celular, estamos aqui nos vendo por vídeo, graças ao programa espacial.
"Na época da missão, vimos tanto interesse em
fazer parcerias, na transferência de tecnologia.
O que não aconteceu."
Atualmente, Marcos Pontes é Ministro da Ciência e Tecnologia. Como tu vês o trabalho dele no cargo? Achas que ele poderia aplicar melhor o conhecimento que adquiriu com a missão?
Loiva - Eu acho que ele poderia, hoje, aproveitar como ministro (e era essa a minha expectativa) realmente todo esse legado, toda essa formação que ele teve como astronauta, como técnico, para trazer mais desenvolvimento para o programa espacial e um melhor aproveitamento para a nossa base de lançamento em Alcântara.
Para teres uma ideia, a base de lançamento de Alcântara tem a melhor posição geográfica mundial, porque para um lançamento espacial há uma série de necessidades, entre elas, a questão do clima. Em Alcântara, tem janelas de lançamento o ano inteiro porque não faz frio excessivo, não tem neve, não é tão quente, a velocidade do vento na região do Equador, onde fica a base, é sempre leve, o que oferece uma grande economia de combustível no lançamento. Também não tem cidades muito próximas. Então, a base está em uma localização superprivilegiada e ela poderia trazer muitos recursos para o Brasil.
Na época da missão, vimos tanto interesse em fazer parcerias, na transferência de tecnologia. A gente ganhou muito em termos de transferência de tecnologia para a preparação do voo, principalmente o INPE e o CTA que ganharam um laboratório bem montado, técnicos especializados, mas nós poderíamos ter trazido muito mais parcerias, o que não aconteceu.
Por que não aconteceu? Desinteresse do governo brasileiro?
Loiva- Falta de uma política de programa espacial, porque a política tá só no papel, mas no dia a dia ela não existe.
Como tu vês o posicionamento do presidente Bolsonaro em relação à pesquisa científica, ciência e tecnologia?
Loiva - O presidente procurou colocar ministros bem técnicos, cada um no seu canto. O Pontes, tecnicamente, é uma excelente pessoa, mas politicamente deixa a desejar. O fato de eu ser um ótimo médico não garante que eu vá saber administrar um hospital ou o sistema médico. Na ciência e tecnologia é a mesma coisa. Tecnicamente, o Pontes foi considerado um dos melhores astronautas.
Os EUA têm mais de 100 astronautas e a Rússia também possui um número significativo, mas o Pontes se destacou entre todos eles, tanto que ele foi muito bem aceito para voar na Rússia ao lado de um americano e um russo, pela capacidade técnica dele. Mas ele não tem essa mesma capacidade para administrar um cronograma de ciência e tecnologia no país. Ele tem boas ideias, mas daí a conseguir colocá-las em ação tem um distanciamento muito grande. São muitas variáveis, muitas áreas que precisam de apoio e nem sempre é fácil conciliar.
"Nossos cientistas fazem muito
com o pouco que recebem"
E sobre os cortes financeiros nessa área?
Loiva - Cortes na área de ciência e tecnologia? Se você estudar história, vai ver que sempre o orçamento de ciência e tecnologia foi questionado, porque, como já comentamos, ciência e tecnologia não dão votos, então, ciência não é prioridade. Tem que ter um bom ministro que saiba negociar, que tenha um bom plano e que brigue por recursos. Na minha vida profissional, tanto na Capes quanto no CNPq, sempre enfrentamos dificuldades de não ter dinheiro pra pagar bolsista no exterior.
É normal você ter uma seleção e não poder mandar o pessoal pro exterior porque não tem liberação de verba. Então, não é uma coisa que aconteceu só no governo Bolsonaro. Sempre aconteceu! Esse é o meu ponto de vista como técnica da área de ciência e tecnologia. Não acho justo. Não é justo. O Brasil tem tudo. Nós temos bons cientistas, temos pessoas que vestem a camisa, tiram do bolso pra desenvolver a ciência.
Lembro de uma vez que, em uma prestação de contas, foi glosada uma rubrica porque o pesquisador havia adquirido um número x de caixas vazias de ovos. A equipe técnica questionou a aquisição e cortou a verba. Aprofundando, descobrimos que o pesquisador precisava isolar um estúdio e como não havia recursos para a aquisição da espuma específica, ele acabou utilizando as caixas de ovos que eram muito mais baratas. A ciência brasileira está cheia de idealistas, como em todas as áreas.
"A área científica brasileira tem pouquíssimos recursos em relação a outros países, mas nossos cientistas fazem muito com o pouco que recebem".
Qual o papel da ciência brasileira nesse momento em que enfrentamos uma pandemia?
Loiva- Temos ótimos pesquisadores e eu tenho muita esperança que o Brasil vai encontrar uma saída, uma vacina, para pelo menos minimizar a médio prazo toda essa situação. Eu acredito muito na ciência e nos cientistas e pesquisadores brasileiros.